quarta-feira, 14 de julho de 2010

O mundo de Elomar

O mundo de Elomar

Em caráter de urgência, fala-se nas mudanças necessárias à escola contemporânea. A quebra de alguns paradigmas a partir do século XIX, somados as transformações sócio-econômicas no século XX, entre outros, levaram alguns teóricos repensar os modelos tradicionais de educação existentes. Ora, pesa também o fato de que a sociedade transfere para o professor a responsabilidade de dar uma resposta aos dilemas educacionais, como se fosse o único culpado pela falta de adequação didática ante as exigências do novo alunado. Prova disso, são as análises de Esteve (1999), sobre o mal-estar vivido pelos docentes europeus no final do século XX, gerado por diversos fatores entre os quais, a velocidade da criação e de socialização de informações.

Por conta disso, exige-se que o professor seja um ser biônico capaz de dar respostas nos campos dos vários saberes além de sua especificidade. Nesse mar de informações muitas vezes inseguras a disposição do incauto discente, inclusive a cultura enlatada de consumo capitalista, subproduto de um projeto midiático e alienante em larga escala, nota-se isso, inclusive, pelo empobrecimento da linguagem onde o “correto” é substituído pelo “ok”, o nacional pelo importado, o nosso pelo alheio. Onde a cultura regional é preterida pela admiração cega da cultura estrangeira. Aqui não cabe uma apologia nacionalista de repúdio a outras culturas, e sim uma crítica ao esquecimento ou desinteresse pela nossa, que de fato, constitui nosso maior pecado, que na fala de Simões; “Hoje, a mídia se incumbe de difundir um padrão construído pela metrópole e, assim, vai destruindo tudo o que remete às origens, por parecer atrasado, ruim, sem prestígio (SIMÕES, Darcília. Língua e estilo de Elomar, 2006/18).

Desde o começo do primeiro semestre de 2010, na faculdade de história da PUC Goiás, nas aulas de antropologia com o professor Dr. Altair Sales, vários temas foram propostos à turma, como: “De baixo da saia da irmã da sua mãe, tem o animal”. “Vim de longe truz, truz, rondeais, culpiais, cantores”. “Quem a paca cara compra paca cara pagará, ou pagará a paca cara quem a paca cara compra?”. E por último, “O inxavido do saqué qui cuati quá qui caçote boto o bico e bato um bote o qui é qui o saqué qué?”. Devido ao caráter inusitado dos temas, de inicio, causou boa medida de pânico entre os discentes. Mais tão logo, se deu as primeiras investigações, observou-se que, além da teoria ministrada em sala, digamos, numa visão antropológica geral, a didática do Dr. Altair, nos lançou ao exame do homem brasileiro, suas tradições, sua linguagem, a arte, a vida do sertão, reiterando o que dizia Bakhtin, “Os três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora a sua própria unidade (Bakhtin, 2003: XXXIII)”.

É claro, que isso é só o começo de um despertar, um primeiro olhar no sentido de se valorizar as riquezas imensuráveis de um povo “pé no chão” com raízes na terra natal, e consequentemente um campo fértil de pensamentos e criatividades. Aliás, essa foi a tônica do professor Altair, “use a criatividade”, e disso está cheio os artistas do sertão.

Sobre o último tema, um trecho de uma obra do poeta, cantador, trovador, como dizia Vinícius de Morais, de “um príncipe da caatinga”, Elomar figueira de melo. Sobre sua obra, fala, André Crim Valente, Doutor em Letras Vernáculas (UFRJ), “No princípio, era o canto. O canto se fez em poesia. E a união de ambos gerou a obra elomariana”. Nela aparecem, arcaísmos, regionalismos e neologismos que enriquecem as canções de Elomar. Destacam-se formas arcaicas como lijera (ligeira), li (lhe), u'a (uma), oro (ouro); formas regionais como adonde (aonde), derna (cruzamento de desde que + na), amiã (amanhã), fulô (flor), inté (até), véia (velha); formas neológicas como mãincença (=manhecença, para o processo de amanhecer), cavandante (cavaleiro +andante), improibi (antítese de proibir), deserança (des + herança). Nesse sentido percebe-se uma aproximação com o autor de “grande sertão: veredas”, Guimarães rosa, dono de uma linguagem peculiar que valeu inclusive uma anedota que dizia: “para valorizar-se diante de um editor, um tradutor empostou a voz e declarou: -Domino várias línguas – inclusive a de Guimarães Rosa”. E que segundo darcília Simões, “Tomando os dois exemplos, Ambos dedicam-se à produção de textos escritos que possam funcionar a um só tempo como registro da variedade idiomática nacional e documento histórico-antropológico da cultura brasileira”.

Dessa forma, vem-nos a mente certo rompimento com a hegemonia cultural litorânea construída e supervalorizada historicamente, e a necessidade de adentrar o interior do país em busca de uma cultura menos afetada pelas mídias, sobre isso fala o jornalista Dioclécio luz

Com a mídia ocupada no fugaz, no trivial, a alternativa inteligente para o Brasil é um artista que seja raro, único, criador do belo e eterno. Porque eles passarão; Elomar, passarinho, ficará. Há uma angústia cercando o país. Tão rico em arte, tão farto em cultura, vive ilhado entre a moda e o modismo, olha para o futuro e não vê. A biodiversidade nacional parece que não existe quando se liga a televisão ou a rádio modernosa. Onde foi parar o que de melhor o Brasil tem? Cadê a nossa cultura tão larga e volumosa? Morreu? Não. Ocultaram-na. É hora de descobrir o Brasil mais uma vez. É preciso que o Brasil revele seus tesouros culturais. Elomar é a cultura que nos cabe. Por uma questão de sobrevivência: sem cultura não temos alma, não somos nada. É hora de espalhar a alma brasileira pelos sertões, litorais e campos gerais, cerrados e praias, pampas e pantanais (Dioclécio Luz).

Nos dois casos, estamos nos referindo ao sertão baiano e mineiro e nos remete a fala do Dr. Altair Sales

“No Brasil nós temos três grandes laboratórios populares, um é o sertão do nordeste, outro é o vale do Jequitinhonha e o outro é a região de Correntina, em função de essas áreas estarem isoladas do contexto global durante muito tempo.... e em função disso, ficou preservado vários valores que dificilmente são vistos em outras sociedades” ( faixa 10 do cd n°6 da série “Bahia singular e plural/Casa de vó produções audiovisuais. Leandro Caetano”)”.

Falando em explorar características culturais não afetadas pela globalização, segundo Darcília Simões, “um dos caminhos possíveis é voltar a atenção para o cancioneiro do interior. Desde Catulo a Dominguinhos temos um quase virgem manancial a explorar”. No caso de Elomar, duas tendências distintas se observam em seu cancioneiro: a retomada de temas religiosos e medievalizantes, e a preocupação com retratar o sertão, sua paisagem sócio-histórica e sua gente. Na primeira percebe-se o uso da linguagem formal padrão e o resgate das formas antigas da língua; na segunda, a linguagem local espontânea, o retrato do sertão brasileiro. Em ambos os representantes dos sertões, Elomar e Rosa, respeitando suas características peculiares, um dos fatores que os aproxima, é a relação com as palavras nos arcaísmos, neologismos e regionalismos bem como seus interesses em reproduzir a vida do sertão. Daí, o mundo de Elomar estar em contraste com a cidade, avesso a urbe e o que ela representa.

“Eu não tenho contato com o campo: eu vivo no campo. Nasci e me criei nele, de forma que todos os valores campesinos, campônios, bucólicos, pastoris, agrários, fazem parte da minha vida, porque sou deste universo... Desde que eu me entendi por gente, novinho, muito cedo eu descobri que a vida urbana, que o processo, o desenvolvimento urbano, o desenvolvimento técnico, a mentalidade tecnicista do século XX, ela é prejudicial (MELLO, 2010b)”.

No entanto, na obra elomariana, percebe-se um diálogo entre as culturas ditas contrapostas, a do campo e a da cidade, entendendo que não há cultura superior, a erudita versus popular, daí o poeta se considerar um observador dessa suposta dualidade, e capaz de interpretá-la ao seu modo

“Eu me vejo como um historiador, um cronista que, a cavaleiro, percebe a bramura que existe entre essas culturas contraponentes, paradoxais, da sociedade roçariana versus cultura da sociedade urbanoides (MELLO, 2010b)”.

Nessa concepção, após o rompimento do conceito de uma cultura superior, e isso a bem pouco tempo, hoje se vê (pelo menos em tese), rechaçado esse pré-conceito no meio acadêmico. No entanto, tais expressões culturais basicamente só encontram admiradores, e aqui reside certa ambigüidade, nos meios intelectuais ou sertanejos, ficando de fora o desejo das massas, que nunca estão interessadas em questões intelectuais, é apenas consumir o “espetáculo”:

Nenhuma força pôde convertê-las à seriedade dos conteúdos, nem mesmo à seriedade do código. O que se lhes dá são mensagens, elas querem apenas signos, elas idolatram o jogo de signos e de estereótipos, idolatram todos os conteúdos desde que eles se transformem numa seqüência espetacular (BAUDRILLARD, 1985. p. 14-15).

Portanto, olhando o quadro com otimismo, uma centelha de esperança nos aparece, quando pensamos na possibilidade de uma democratização da cultura que se manifesta nesses dois meios, quem sabe instrumentalizada pela máquina que hoje se ocupa em sistematizar a alienação cultural, os meios de comunicações em massa, embora seja uma proposta quase utópica. Resta-nos no momento, a exemplo do Dr. Altair Sales Barbosa, participar desse processo, despertando em nossos pares, semelhante interesse em se perceber um mundo quase desconhecido, o de Elomar, dentro do kosmos numericamente mais amplo, o das massas.

Conclusão

Eis aqui uma sugestão aos professores brasileiros, frente a demanda por uma didática que corresponda os novos rumos da educação, a universalização cultural pela globalização que exige do docente uma missão quase impossível, uma resposta aos dilemas educacionais fruto das transformações sócio-culturais da pós-modernidade. Que se apregoe a necessidade de se auto-conhecer como ponto de partida para experiências posteriores no que diz respeito às interações culturais, conhecer as manifestações culturais da própria terra é imprescindível, como dizia a frase em delfos que viria nortear a vida de Sócrates, “conhece-te a ti mesmo”.

Fábio de Sousa neto.

Goiânia, 2010/2

BIBLIOGRAFIA

SIMÕES, Darcilia. Elomar, a língua e o estilo do português do Brasil. Projeto aprovado pelo mérito no Prociência/UERJ, 2003. [61p.].

MARTINS, gaioto Alexandre. Monografia;A presença do hibridismo cultural na trajetória de

Elomar figueira mello: o “imbuzêro das bêra do rio”MARINGÁ /2009.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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